O Dia Internacional da Memória do Tráfico Negreiro e da sua Abolição & a Paisagem Cultural do Promontório de Sagres
“Todas as palavras do vendedor, /mas nenhuma do vendido. / As palavras de Reis e Capitães moveram navios. / Mas nem uma palavra vinda do porão” (Zora Neale Hurston, Barracon)

Hoje, dia 23 de agosto, assinala-se o Dia Internacional da Memória do Tráfico Negreiro e da sua Abolição, para lembrar todos os seres humanos que sofreram a violência do tráfico de pessoas escravizadas, no processo desumano que também ficou designado como “comércio triangular”. Este dia constitui um marco, promovido pela UNESCO, onde se pretende homenagear todos os homens e mulheres que lutaram pela sua libertação, neste mesmo dia, no ano de 1791, em São Domingos, atualmente um estado soberano do Haiti, naquele que seria o início da Revolução Haitiana, um momento decisivo que causou forte impacto não só nas Américas, mas também a nível mundial.


O Promontório de Sagres – onde a Fortaleza de Sagres se situa - foi reconhecido com a Marca do Património Europeu, em 2015, pelo papel fundamental que lhe é justamente atribuído no contexto da abertura da Europa ao Mundo, associado ao processo de exploração marítima iniciado pelo Infante D. Henrique, que causou transformações na evolução da cultura, da ciência, e do comércio, e que tiveram um impacto decisivo na forma de moldar o mundo, como hoje o conhecemos. 


A candidatura à Marca do Património Europeu, em 2015, assentou também na riqueza da paisagem cultural deste território, que incorpora uma rede complexa de heranças diversas, muito significativas em contexto europeu, tais como o aglomerado de vestígios megalíticos – os menires, marcadores que sacralizaram a paisagem do homem de então –  de relevância europeia; a memória associada ao culto vicentino e à antiga Igreja do Corvo, que se situaria nas imediações do Cabo de São Vicente, templo que acolheria cristãos, moçárabes, mas também muçulmanos; a Ermida de Nª Sr.ª de Guadalupe, na Raposeira; a rede de fortificações desta costa, em que a Fortaleza de Sagres se integra; também o património subaquático aqui existente, assim como o seu património natural.


A distinção desta paisagem cultural como Marca do Património Europeu deu também destaque a Lagos, como o primeiro “cais de partida” das primeiras viagens de descoberta da costa africana, lugar que detém um património extremamente importante associado à escravatura. 
 

Gomes Eanes de Zurara descreveu, na Crónica da Conquista e dos Feitos da Guiné, o desembarque, a separação por lotes e a venda de 235 homens, mulheres e crianças, numa manhã de agosto do ano 1444, em Lagos. E a recente descoberta, em 2009, de mais de 150 esqueletos, que rapidamente foram identificados como sendo de africanos escravizados, de meados do século XV e XVI, junto ao vale da Gafaria, no exterior das muralhas - na zona que veio a ser o parque de estacionamento do Anel Verde - de Lagos, deu materialidade histórica aos testemunhos do cronista. Estamos perante a descoberta do mais antigo “cemitério” de africanos escravizados em solo europeu, um achado patrimonial único.


Apesar de, em 1761, um decreto ter vetado a entrada de pessoas escravizadas no Reino, - o tráfico negreiro estava ainda longe de ser abolido no território colonial português. Aliás, pelo contrário, houve um incremento deste comércio ignóbil, nas décadas seguintes, promovido por várias nações.
 

De acordo com o website SlaveVoyages, nos porões dos navios negreiros ao longo de vários séculos, foram mais de 12 milhões as pessoas escravizadas, de 1501 a 1875, no comércio transatlântico. Sob a bandeira portuguesa e brasileira, foram 5 848.266, seguido da britânica, com 3 259.411. 

A paisagem cultural do território de Sagres e Lagos constitui, assim, um lugar de memória, complexo, paradoxal e sensível, mas com um enorme potencial, para a reflexão, discussão e questionamento sobre o verdadeiro impacto deste processo da primeira fase das viagens de expansão marítima. 


Convidamos-vos a visitar o novo Centro Expositivo da Fortaleza de Sagres, inaugurado em março deste ano, que apresenta uma leitura mais ampla e que questiona esta e várias outras temáticas.

 

De acordo com o ultimo relatório do Global Slavery Index 2023, Portugal é o 3.º país europeu que mais ações tem concretizado no combate à escravatura moderna.

 

Para mais informações:
Fortaleza de Sagres: http://promontoriodesagres.pt/
Rede de sítios Marca do Património Europeu: https://geo.osnabrueck.de/ehl/EN/map
Relatório Global Slavery Index 2023:
https://cdn.walkfree.org/content/uploads/2023/05/24145755/GSI-2023-Europe-Central-Asia-Regional-Report.pdf
 

Crédito fotográfico: Centro Expositivo da Fortaleza de Sagres - Edigma e DRCAlg

23 agosto 2023